Sensemaking: quando o sentido bate à porta dos negócios
Em algum momento você já deu boas risadas assistindo a uma apresentação de stand-up, a modalidade cênica que surgiu nos EUA e começou a se desenvolver com mais força no Brasil nos anos 2000. De forma geral, as apresentações de stand-up poderiam ser definidas dessa forma: um artista expõe no palco uma série de situações cotidianas, que, ao serem olhadas por um novo ângulo, não fazem sentido, são controversas, incoerentes. O pulso cômico surge justamente desta exposição, através de um relato detalhado e talentoso de uma situação descabida, mas geralmente muito comum.
No contexto das organizações, sensemaking é entendido como o processo de criação de sentido entre os indivíduos de uma instituição. No sensemaking, vamos além de uma mera interpretação, de uma leitura daquilo que existe. Estamos falando da criação de entendimento. Ou seja, algo novo de fato surge. Assim, da mesma forma como o antropólogo faz cultura ao estudar e escrever sobre a cultura de um grupo, nós estamos criando sentido ao entender o mundo, desenvolvendo novas lentes de percepção, e isso adiciona muita complexidade na compreensão desse processo.
De acordo com Karl Weick, pesquisador organizacional americano, sensemaking é um processo que acontece sempre de forma retrospectiva. Ou seja, a construção de sentido dá-se sempre em função de uma situação passada. A partir da ocorrência de um evento, que rompe com o fluxo de expectativas de um indivíduo ou de um coletivo, surge a necessidade e urgência de reconstruir uma nova estabilidade de significação e propósito. Busca-se então entender o que aconteceu, quais as motivações para o ocorrido, e as perspectivas futuras para aquele contexto. Imagine uma grande crise em uma empresa. A dinâmica organizacional interrompida pela situação de conflito irá se esforçar em construir leituras e narrativas sobre o ocorrido para que a cultura da organização seja restaurada.
Segundo Weick, um dos princípios do sensemaking é o ‘fluxo contínuo’. Assim como não é possível evitar que as pessoas criem sentido sobre os fatos a todo tempo, tampouco podemos frear o processo em nós. Atribuiremos significados aos fatos, aos acontecimentos históricos, a tudo que ocorre. Não há como fugirmos de um posicionamento. Não há como evitarmos a construção de narrativas, mesmo porque o silêncio e omissão também irão configurar alguma criação de sentido na dinâmica cultural.
O mundo dos negócios hoje é atravessado por demandas contemporâneas de diversas naturezas: transformação digital, inovação, propósito, sustentabilidade, ESG, entre outras. Em cada uma destas frentes de mudança, a compreensão do cenário é incontornável, e a criação de sentido apresenta-se como fundamental. Vejamos. O que é sustentabilidade? Algumas abordagens mais recentes, no campo da sustentabilidade e da ecologia, tais como economia circular e linhas ligadas às culturas regenerativas, questionam, por exemplo, a semântica literal da sustentabilidade, com o rigor em relação ao significado da palavra.
Imagine que o mundo fosse a sua residência, os moradores da casa fossem a população global, e o que orçamento familiar fosse todos os recursos do planeta. Se eu propusesse para você que o seu foco de vida devesse ser “sustentar a casa”, talvez isso parecesse pouco inspirador. Com tanta coisa boa em potencial para fazer dentro de um lar, num ambiente saudável, com pessoas amáveis, ‘apenas sustentar-se’, no sentido de manutenção do que existe, poderia ser pouco. Precisamos regenerar contextos, descobrir novos caminhos. Mas ainda assim, talvez a palavra “sustentabilidade” seja ainda a melhor para integrar as utopias neste campo.
Por isso, precisamos de novos significados, de novos sentidos, e com isso o entendimento do processo de sensemaking pode nos ajudar. Assumindo que a criação de sentido é disparada por uma ruptura de expectativa em relação ao cenário, podemos nos perguntar: o que dispara hoje a criação de sentido dentro de um contexto de questionamento do modo de produção capitalista? De que ruptura estamos falando?
Vejo que vivemos em uma constante ruptura de expectativa sobre o que poderia ser a vida na Terra, com tanta tecnologia e informação. Alcançamos Marte com um robô mais uma vez, em fevereiro de 2021, enquanto não conseguimos parar de sujar nossas cidades. Por isso, nosso modo de vida ainda é uma ruptura naquilo que entendemos que deveria ser o minimamente viável, uma vida feliz, saudável e mais igualitária por aqui mesmo. Mas o que vemos é o excesso de poluentes, a agressão ao meio ambiente, e a todo tipo de violência aos direitos humanos. Boa parte destas violências é estrutural, uma vez que o sistema está organizado de uma forma que elas não tendem a cessar. Com um mundo constantemente em crise, o cenário é uma ferida aberta à espera de resposta e ação: campo livre para quem quer entender, construir e propor uma nova visão e prática.
Basu e Palazzo propuseram em 2008 uma definição de Responsabilidade Social Corporativa a partir da perspectiva de sensemaking: “Responsabilidade Social Corporativa é o processo pelo qual os gerentes de uma organização pensam e discutem as relações com as partes interessadas, bem como seus papéis em relação ao bem comum, juntamente com sua disposição comportamental e com relação ao seu atingimento”.
Nesta definição, a Responsabilidade Social Corporativa deixa de ser uma meta estática para ser entendida como um processo de aprendizado, artesanal, onde o gestor, orientado pela utopia do bem comum, torna-se um cuidador de contextos, envolvendo pessoas, considerando demandas e tomando decisões. Este olhar muda o nosso tempo de observação e trabalho. Para tudo isso, a ‘disposição comportamental’, citada na definição, é premissa básica para qualquer transformação. Do que a empresa é capaz de abrir mão para cumprir seus valores declarados?
Uma empresa pode entender que a sustentabilidade se restringe aos limites das obrigações legais, e que sustentar-se é obedecer a lei e seguir operando. Para um determinado ambientalista de um projeto que recupere áreas degradadas, o desmatamento pode não ser justificável. Para outro gestor ambiental, que seja patrocinado por uma empresa do setor, tudo pode ser perfeitamente aceitável, e até desejável, para que viabilize a compensação e seu projeto de vida. Faz sentido? Nenhum? Algum? Este é o ponto. A depender de cada caso, a “sustentabilidade” pode estar sendo tratada apenas como um ‘conteúdo socioambiental’, uma estratégia sofisticada de relações públicas, como um paliativo, um band-aid do mundo doente de cada um. ‘Alguma ferida por aí? Temos aqui um pacote de sustentabilidade para sua empresa ficar melhor’.
Eu gostaria sinceramente de lhe oferecer um pacote de sensemaking para você sair usando na sua empresa, mas não é bem essa a proposta, pela natureza do que vejo. O conceito e o processo de sensemaking são uma leitura do que acontece em nós, nos nossos pensamento e emoções. Por nos trazer mais consciência, a capacidade de enxergar pode ser muito mais poderosa e útil do que qualquer ferramenta produtora de indicadores de alta precisão. O processo de sensemaking nos faz levarmos em consideração o contexto de cada situação, e pensar com maior seriedade para a realidade ao nosso redor. Considerá-lo como um todo pode revelar o que há de mais humano em nós.
Essa mesma incrível capacidade que temos de examinar cada contexto, e avaliar seus detalhes, muitas vezes é colocada em segundo plano. Chama mais atenção a afirmação de que ‘errar é humano’. No universo da cultura corporativa de segurança, o termo ‘fator humano’ é sinônimo da nossa condição de cometer erros, por sermos… humanos. Que espectro é esse que criamos, através das nossas próprias invenções e racionalidades quantitativas, que simplesmente nos resume como seres potencialmente falhos? Que lente é essa? Onde ela de fato cabe e onde está fora de lugar? No mar de informações da contemporaneidade, a capacidade analítica de dar sentido ao caos tornou-se tábua de salvação. Falta tempo para tudo, e o sentido vira abrigo na tempestade.
Disse Einsten: “Não conseguimos resolver um problema com base no mesmo raciocínio usado para criá-lo”. Nós, incansáveis na busca das soluções dos problemas ligados à sustentabilidade, não podemos desistir. Vamos em busca de novos recursos, novas descobertas e linguagens.
“Vemos agora a necessidade de construção de narrativas socioambientais singulares, capazes de produzir sentidos que extrapolam os ambientes corporativos. Um tipo de narrativa humanizada, que faça sentido para cada indivíduo e que transforme números, estatísticas e metas em nomes, em histórias de vida firmemente ligadas aos seus territórios”. Paulo Nassar (Guia de Comunicação e Sustentabilidade, CEBDS, 2020)
Dominemos os números, as métricas e indicadores, principalmente para que eles não nos dominem. Mas não vamos esquecer que estamos falando da jornada humana, e sobre como torná-la à prova de nós mesmos. Somos humanos. Temos sede de sentido, e tudo indica que continuaremos a ter.
O mundo exige de nós uma resposta. Neste mês, março de 2021, completamos um ano dentro de uma pandemia global. Não há tempo a perder. Há menos interação física, porém talvez haja mais foco. Não há espaço para produzirmos mais ruído, resíduo e confusão. Não há mais espaço para concessões que sacrifiquem a ética, a vida ou a sabedoria. É preciso dar uma resposta clara ao mundo. Devemos isso a nós mesmos.
É preciso falar e escrever com todas as letras, é preciso preservar nossa saúde mental, nossa clareza intelectual, e nosso sentido de viver. É preciso dizer o que se pensa, concatenar o pensamento, e dar vazão a tudo aquilo que vemos que de fato tem fundamento. É preciso deixar de dar desculpa, parar de culpar o passado, e efetivamente entregar ao mundo o melhor de nós, algo que de fato faça sentido.
* Pedro Rivas é Doutor em Administração pela Rennes Business School (França). Ele é um profissional de comunicação que atua no setor de energia há quase duas décadas, com experiência nas áreas de brand experience, comunicação integrada e RSC.