Reputação e #StopHateForProfit: hora da mudança?
Redes sociais digitais: consumidores empoderados e máquinas de desinformação
Além de proporcionarem o empoderamento dos consumidores, tornando-se veículos de expressão identitária, as redes sociais digitais criaram um novo espaço onde as marcas desenvolveram formas criativas de se conectarem com os seus diferentes públicos. Os impactos da revolução digital para a indústria da publicidade são gigantescos: só no ano passado, o Facebook obteve um lucro de US$ 70 bilhões, sendo que 99% desta receita foi oriunda de anúncios em suas plataformas.
No entanto, tais plataformas também se tornaram veículos de difusão de conteúdos problemáticos: fake news, extremismo político, discursos de ódio evocando racismo, misoginia, demofobia, dentre outros. Sucessivos escândalos de manipulação de informações nestas plataformas, envolvendo atores como Breitbart News e Cambridge Analytica, tornaram-se alvo de controvérsias. Empresas como Facebook, YouTube e Twitter tornaram-se o centro das atenções no debate público nos últimos anos, envolvendo questões como privacidade, liberdade de expressão, censura e o futuro da democracia.
O lance mais recente desta discussão ocorreu no último dia 17 de junho, com o lançamento do movimento #StopHateforProfit, um protesto direcionado ao Facebook por não se posicionar pelas postagens do presidente norte-americano durante as ondas de protestos que sacudiram as cidades do país, após a morte de George Floyd, na cidade de Mineápolis, no dia 25 de maio de 2020. O movimento, fruto da convergência entre entidades da sociedade civil e grandes corporações, demanda que o Facebook adote políticas que possibilitem o escrutínio público das regras de governança da rede, a vigilância e a remoção de conteúdos ditos problemáticos, além do suporte para indivíduos que sofram assédio e ameaças em seus perfis.
O movimento, iniciado por empresas socialmente orientadas como Patagonia e The North Face, ganhou a adesão de pesos-pesados dos investimentos publicitários: Adidas, Beam Suntory, Best Buy, Boeing, Coca-Cola, Colgate-Palmolive, Diageo, Ford, Honda, Levi’s, Mozilla, Pfizer, Puma, Reebok, SAP, Starbucks, Unilever, Verizon, Volkswagen, dentre outras. Segundo os últimos dados da homepage do movimento, cerca de 160 empresas interromperam os seus anúncios durante o mês de julho.
No Brasil, iniciativas recentemente abertas como o ,Sleeping Giants Brasil, também procuram chamar a atenção das empresas que anunciam em perfis na internet que propagam a desinformação, o extremismo político e o discurso de ódio.
Consumidores ativistas, reputação e a politização das marcas
Uma marca é um composto de nome, símbolo, tipologia, cores, experiências e quaisquer outros atributos que distingam uma organização das demais, expressando seu posicionamento no mercado. Quando uma organização desenvolve uma marca, seu desejo é projetar uma imagem de si que seja capaz de se relacionar positivamente a opinião pública. Daí o esforço constante em construir uma identidade que inspire respeito, confiança e afeto.
A imagem de marca está intimamente relacionada à reputação da organização, aqui entendida como confiança, respeito, reconhecimento e familiaridade conquistados. Quando identidade de marca e imagem da organização estão alinhadas na mente dos públicos de interesse, podemos dizer que há uma reputação sólida. O significado da marca não é construído apenas pela organização detentora de seus direitos, mas também pelo olhar dos diferentes públicos que avaliam constantemente as suas práticas de negócios.
A digitalização do conteúdo gerou “espaço de prateleira gratuitos”, onde as redes sociais se tornaram grandes atores. É nesses espaços que as empresas buscam atrair a atenção de seus consumidores acumulando reputação. A busca por reputação torna-se um empreendimento global justamente, porque se converte em resultados tangíveis muito mais rapidamente na era digital. Para o teórico norte-americano Chris Anderson , esse fenômeno é chamado de economia da reputação.
A conectividade possibilitou aos consumidores a exposição de suas opiniões nas redes, fazendo com que as decisões de compra fossem cada vez mais influenciadas por estas. Sabendo disso, as marcas se antropomorfizam, adotando propósitos e causas sociais, promovendo a sua identificação com os valores do seu público. A construção da imagem de marca e da reputação organizacional passa pela adoção de ações que estejam em concordância com os valores de seus consumidores, levando ao fenômeno da politização das marcas.
A relação entre política e consumo não é uma novidade. Por exemplo, a Europa dos anos 1940 viveu uma profusão de manifestações em torno de impostos e do suprimento de determinados bens e serviços, tais como água, gás, carvão, açúcar, pão. Na década de 1960, a explosão de movimentos sociais em defesa dos direitos civis e das minorias reforça a figura do consumidor que luta pelo bem-estar social e os valores cívicos, depondo contra a simples percepção do consumo com uma prática individualista e frívola que grassa no senso comum.
No contexto atual, observamos atônitos o aumento da descrença nas instituições políticas tradicionais, de forma que o exercício da cidadania migra para outras esferas, notadamente o mercado. Ao escolher um produto ou uma marca, definimos publicamente o que nos é importante, de forma que o consumo se torna um local privilegiado para manifestarmos nossos valores. Daí o crescente fenômeno de politização do consumo.
Liberdade de expressão, censura ou responsabilidade social?
A polarização política dos tempos atuais é um tremendo desafio para os profissionais de reputação. As fronteiras entre a liberdade de expressão, censura e o ataque aos valores civilizatórios é uma linha tênue, difícil de ser delimitada, e o o ativismo digital de movimentos como #StopHateforProfit é a prova de como os profissionais de marketing devem estar atentos a este debate. As marcas precisam engajar os seus diferentes públicos em atividades que vão além do simples consumo, enfatizando valores como accountability, transparência e preocupação com o bem-estar e a melhoria da qualidade de vida dos seus respectivos públicos. Posicionar-se contra a discricionariedade de gênero, raça ou orientação sexual são mais um capítulo na discussão sobre a politização do consumo.
Entretanto, tais posicionamentos precisam em consonância estar com a cultura empresarial. O consumidor percebe ações destituídas de veracidade e comprometimento, e não está disposto a perdoar mentiras – vide a chamada “cultura do cancelamento”. Na era da economia da reputação, onde os consumidores são cada vez mais ativos nas redes sociais, descrentes da política tradicional e exercendo seu ativismo, através de práticas como boicotes e buycotts – que podem comprometer a competitividade e a licença social para operação das organizações – é preciso que as organizações assumam valores e se posicionem politicamente. Isso não é apenas uma ação com vistas a impulsionar vendas, mas sim de alinhar-se a propósitos que estejam alinhados aos seus públicos.
Cada vez mais, as marcas precisam estar cientes do seu papel no momento atual. As escolhas de consumo não são apenas utilitárias, mas expressivas dado o papel que as marcas ocupam no cotidiano dos consumidores. Como marcadores identitários, as marcas têm muito a contribuir na busca de uma sociedade mais democrática, onde liberdade e responsabilidade são dois lados da mesma moeda. Essa é a lição que o ativismo digital proporciona às empresas e aos seus profissionais.
* José Mauro Gonçalves Nunes é Professor Adjunto (IFHT/UERJ), Professor Colaborador do Mestrado Executivo em Gestão Empresarial (EBAPE/FGV), Doutor em Psicologia (PUC-Rio), Sócio-Diretor da Pragma Consultoria e Treinamento.
* Izabelle Fernanda Silveira Vieira é Professora convidada dos cursos de Educação Executiva do IDE/FGV, Doutora em Ciências Sociais (PPCIS/UERJ), Consultora da Pragma Consultoria e Treinamento.